quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Crônica sobre um bacharel em Direito impedido criminosamente de trabalhar


Por Reynaldo Arantes


É doce recordar a voz da minha mãe me acordando para mais um dia... O carinho e o incentivo revigoravam a mente após um sono reparador em uma cama “elástica” de ferro, com colchão de capim, duro, que soltava um pó danado, mas que embalava meu sono profundo de todas as noites.

Levantava e mesmo ainda aproveitando os últimos estágios do sono, lavava o rosto, escovava os dentes, molhava os cachos de cabelos rebeldes e já sorridente, chegava a mesa da cozinha, onde um xícara de café fumegante e um pedaço de broa caseira me esperavam. Não havia leite sempre, manteiga era artigo de luxo, mas a broa era feita por minha mãe com aquele carinho peculiar às mães e era o suficiente para energizar meu corpo ainda miúdo e infantil...

Tinha então sete anos e iniciava minha jornada em busca de uma formação que me tornasse um cidadão útil à minha pátria, à minha família. “O Brasil somos nós que o fazemos” era a frase ouvida das professoras nos primeiros dias de aula. Sei que foi com sacrifício que minha mãe comprou a cartilha “Caminho Feliz”, um lápis nº 2, um apontador simples, uma borracha Mercúrio – com o símbolo de um cara com um chapéu de asas, mais tarde vim saber ser um Deus Grego – uma régua de 15 cm e uma caneta Bic azul. O material ia em uma sacola feita pela minha mãe, de tecido de calça jeans velha, que eu orgulhosamente colocava nos ombros.

As aulas começavam depois do hasteamento da Bandeira Nacional na quadra da Escola simples, com paredes de tijolões de cimento, cadeiras com apoio para escrever e quadro verde, que não sabia porque se chamavam “Negros”. Aprendi as primeiras letras ouvindo as vozes incisivas de professoras que faziam do ensino uma missão divina e que eram segundas mães para todos, sempre preocupadas com o colega que chegava descalço, pois em sua família faltava até dinheiro para as havaianas. A estes, a porção de polenta mole com molho de carne moída era sempre maior nos recreios.

Recreio era sinônimo de alegria, com jogos de queimada e futebol, ambos movidos a bolas de meia. Gastávamos a pouca energia da merenda simples em pouco menos de meia hora de atividades felizes e as vezes, dormíamos na cadeira após, cansados da brincadeira e pelo trabalho do estômago em digerir a merenda. Alguns poucos acrescentavam frutas, salgadinhos e uma garrafinha de grapette – refrigerante de framboesa – na merenda. A maioria só ficava vendo e torcendo para um dia seu pai ter condições de fazer o mesmo.

Assim, fiz os primeiros 4 anos do primário e aos 11 anos – faço aniversário em novembro... – quando cheguei a 5ª série, comecei minha vida de trabalhador. Fui contratado para escovar os sapatos que o “remendão” amigo da família consertava. Assim, ao voltar da escola, almoçava arroz, feijão e legumes cozidos, algumas vezes, ovo frito e raramente um bife translúcido – de um lado se via o outro – incrementado com cebolas e seguia para o trabalho que até hoje não sei se era remunerado ou não, pois nunca recebi nada pelo que fazia, mas fazia meu trabalho com gosto. Afinal, era meu primeiro emprego, me sentia útil, produzindo algo...

Na nova fase, ginasial, a novidade eram os vários professores: química, matemática, português, história, geografia, Educação Moral e Cívica, todos com ar de sabedoria e que eram modelos de estudo por nós. O recreio já era mais seleto, pois não nos misturávamos com as “crianças” do primário... O jogo agora era só futebol, com bolas de capotão sempre com tiras de couro esvoaçando de um lado para outro. Os empregos se multiplicavam: ajudante em farmácias, mercados, sempre limpando o chão, arrumando prateleiras, levando entregas, fazendo trabalhos sem valor, mas o importante é que já havia pagamento e as moedas que ficavam para mim, eram economizadas arduamente em um porquinho de plástico, com uma abertura em cima que dificultava a retirada e nos incentivava a deixa-lo mais pesado. Todas as noites, sonhava-se com o que fazer com o dinheiro economizado, enquanto se sopesava o porquinho e se ouvia o tilintar das moedas...

Terminei a 8ª série e me recordo bem dos professores durante todo o ano falando da importância de se estudar, de seguir os estudos, de fazer o colegial e se preparar bem para uma vida profissional. Os exemplos eram dados com nomes de colegas que ficavam para trás, que pararam de estudar desde o primário pelos mais variados motivos: queriam mais tempo para jogar bola, precisavam trabalhar o dia todo para ajudar os pais, se achavam burros e ao repetirem, saiam da escola e o pior, aqueles que queriam estudar, mas os pais achavam importante só aprender ler e escrever e assim que eles demonstravam saber o básico, eram retirados da escola e colocados para trabalhar.

Já com meus 14 anos, me sentindo um homem – até meu bigode já aparecia um pouco e eu o realçava com lápis sem dizer isto para ninguém, é claro – já trabalhava o dia todo e estudava a noite. Meus trabalhos se alternavam, mas sempre eram puxados, cansativos e sempre eu chegava na escola lutando para não dormir. A hora do recreio já não tinha mais o glamour de antes, pois cansado, só queria relaxar um pouco e observar os poucos que não trabalhavam e tinham disposição para jogar volley, basquete ou futebol de salão na quadra de cimento liso.

As noites de frio ou de chuva eram as piores, pois apesar de ter conquistado minha bicicleta, fruto de porquinhos cheios de moedas e muitas trocas entre colegas, o trajeto do serviço para a escola e da escola para casa à noite sempre alongava os quarteirões e tinha de me concentrar e pensar na sopa quentinha que me esperava, no olhar doce da minha mãe, no olhar severo mas incentivador do meu pai e na cama, que continuava a mesma, com seu colchão de capim seco me esperando para mais uma noite de sono.

O colegial trouxe para minha realidade os trabalhos escolares que tomavam meu tempo nos finais de semana e me faziam optar entre um jogo de futebol no campinho de terra próximo com os amigos e a necessidade de fazer os trabalhos, obter notas e passar sem repetir ou ficar de recuperação. Ao contrário de muitos amigos, preferi os estudos e segui em frente, enquanto a cada semana, a sala apresentava mais uma cadeira vazia...

Terminei finalmente o colegial, comecei a sonhar com profissões diversas, não sabia ainda que caminho seguir e tive uma parada nos estudos já que em minha cidadezinha do interior não havia faculdade e nem curso profissionalizante. Foi um hiato gostoso depois de 11 anos de estudos por poder chegar em casa no inicio da noite e poder assistir o Jornal Nacional, ler livros sem a obrigação de estudar para fazer resumos e ao mesmo tempo, um período de incertezas quanto ao caminho a se seguir mais para a frente. Um ano de folga e já chegou minha vez de se alistar, cumprir minha obrigação para com a minha Pátria e lá fui eu servir como atirador no Tiro de Guerra da minha cidade. Era uma honra vestir a farda, calçar um coturno bem engraxado, limpar a fivela do cinto de pano com bombril para ele ficar brilhante.

Quem gostava de estudar e já estava ou tinha terminado o colegial era chamado pelo Sargento – a maior autoridade militar que conhecíamos – para fazer o curso de Monitor, passar por provas escritas difíceis e se aprovado entre os melhores, comandar seu próprio pelotão de 9 homens. Fui o primeiro colocado em uma disputa acirrada com o segundo lugar, disputando nota a nota nas disciplinas apresentadas. Minha recompensa foi uma braçadeira de Monitor, que chamava a atenção das meninas nas festas e nas ruas da cidade.

As atividades físicas, as horas de estudo, as marchas nos finais de semana, as noites e os dias para tirar “Guarda” no quartel, a camaradagem, as brincadeiras adultas entre os colegas, um aprendizado para a vida... O serviço militar foi uma lição de respeito às leis e a hierarquia social...

Mas o serviço militar em Tiro de Guerra, não interferia no trabalho de cada um. Assim, levantava às 5h com a cidade dormindo, me dirigia pelo escuro das ruas mal iluminadas de casa até o “TG”, fazia minhas atividades e as 8h estava rapidamente trocando a farda por roupas civis e me dirigindo para meu trabalho como qualquer cidadão.

Obtive minha reservista como cabo de 2ª classe – distinção como Monitor – e tirei meu título de eleitor, que junto com o CIC (cartão de identificação do Contribuinte) – ainda não era CPF – o RG e a Carteira de trabalho que já tinha há alguns anos, me tornava um cidadão apto a exercer minha cidadania.

Fui em busca de meus sonhos... Mudei da minha cidadezinha para um centro maior, onde havia faculdade e onde poderia ter uma profissão, um nível superior, virar doutor... Para me manter, os trabalhos eram estafantes, mas encontrando trabalho eu tinha como buscar minhas metas e chegar a uma faculdade. Fiz vestibular, consegui uma vaga e me inspirando em Rui Barbosa entrei para fazer o curso de Direito.

Foram anos sofridos, sacrificados, onde o corpo reclamava dos limites extrapolados com o trabalho diário e os estudos noturnos. Os bancos dos ônibus entre o trabalho e a faculdade eram duros, desconfortáveis e gelados, mas toda noite o cobrador me acordava quando chegava meu ponto e eu podia dormir nos minutos do trajeto, apesar do desconforto, pois meu corpo queria o descanso que eu não dava...

A maior dificuldade não era a mensalidade, a passagem de ônibus, a fome que me atiçava os sentidos por falta de dinheiro para me alimentar fora de casa, a dureza era o valor dos livros necessários para se estudar, sempre inacessíveis aos meus parcos recursos. Já escolado pela vida, vivia em “sebos” a caça de livros descartados, de edições anteriores com itens obsoletos, mas que tinha uma grande parte atual e que estava ao meu alcance financeiro. As partes revogadas, eu cuidadosamente cobria com as modificações escritas à mão em pedaços de papel.

A ida aos sebos e os preços acessíveis ao meu bolso, me faziam investir em outros livros de Direito não citados em sala de aula, mas que me davam prazer em ler e em aprender um pouco mais. Como eu, a maioria dos colegas do curso fazia Direito por vocação, contava-se nos dedos de uma mão os que estavam fazendo o curso por imposição dos pais ou que não tinham a aptidão pela matéria.

Buscar complementos, exercitar oratória, postura e expressão corporal, ler frases em Latim que nunca decorei, mas que anotava diligentemente para montar meu dicionário de expressões latinas, participar de palestras, interagir em debates sobre temas jurídicos, aplicar o que estávamos aprendendo nos fatos noticiados do dia a dia, tudo era importante. Eu estava me preparando para ser um advogado... Para defender pessoas, para aplicar a Constituição e fazer respeitar a Democracia e o Estado Democrático de Direito. Quem faz Direito quer melhorar o Mundo, quer lutar contra as injustiças e fazer valer as leis.

Já no inicio da faculdade me casei mais por conveniência que por paixão avassaladora. Precisava de alguém para cuidar das minhas coisas em parceria e dividir as despesas de uma casa. Estudávamos juntos, trabalhávamos juntos e construíamos uma vida juntos. Ela acabou o colegial e nossos recursos não davam para manter dois na faculdade. Ela ficou em casa a noite e me incentivava a continuar os estudos... Quando eu chegava, ela estava dormindo. Ia nas pontas dos pés até a cozinha matar a fome e deitava devagar, pois o dia dela era trabalhoso também.

Veio meu filho e se não fosse a mãe ele não saberia o que era família, pois eu saia com ele dormindo e voltava com ele dormindo. Nos finais de semana me debruçava sobre livros enquanto ele engatinhava, ele crescia e eu não via. Eu era pai biológico, mas ele só sabia que eu existia porque ocupava uma parte da cama à noite e ele me via sentado na frente de livros durante os finais de semana.

A cada ano que passa, mais difícil fica para fisicamente agüentar fazer a faculdade. As aulas ficam mais longas, as férias mais pequenas, as matérias mais complexas e a vista mais fraca, adotei os óculos por necessidade e meu único prazer era ter cada vez mais argumentos para me embasar nos debates jurídicos. O estudo e os dias avançam, estava chegando minha formatura...

Não tive dinheiro para as festas de formatura, apenas o básico para alugar a beca e fazer o juramento. Minha mulher está radiante, apostou em um vencedor, meu filho já corre pelas galerias e entre os bancos junto com outras crianças. Vejo a cena e digo a mim mesmo que ele terá mais que uma havaiana para ir a escola em breve. Me sacrifiquei, mas agora chegou minha hora de ser recompensado. Alguns colegas de trabalho vieram me prestigiar, virei doutor, já ajudei vários colegas de trabalho com orientações de como agir, a família me liga para me consultar sobre Direitos e já me sinto com a base necessária para iniciar o aprendizado prático e me tornar um profissional completo.

Pego meu Diploma, olho para ele e resolvo que ele merece uma moldura especial, pois foram 16 anos de estudo, de luta, de sacrifício, de noites mal dormidas, de corpo cansado, de sonecas em bancos de ônibus, de economias rigorosas, de ausência familiar, de dormir sobre livros, de finais de semana e férias estudando, de dedicação hercúlea para conquistar aquele pedaço de papel com várias assinaturas e que, através do qual, o Estado Brasileiro me conferia o direito de trabalhar. A moldura dourada de madeira simples foi o máximo que consegui, mas para mim era um troféu maravilhoso. Eu achava que tinha saído do inferno e que estava às portas do paraíso...

Faltava ainda um degrau, fazer o Exame de Ordem para finalmente sair de meu emprego normal e sem atrativos, para me tornar um profissional liberal, ser meu próprio patrão depois de anos subserviente e dedicado aos outros. Fiz minha inscrição confiante, afinal, sempre fui um dos melhores alunos da classe e da própria faculdade, dominava as matérias, tinha complementado as aulas com os livros dos sebos e cuidava da minha bagagem cultural como poucos, sempre lendo revistas jurídicas, artigos de juristas sobre diversos assuntos, enfim, era fazer o Exame de Ordem e iniciar minha carreira, onde teria ainda muito o que aprender, aprender a prática, especializar-me, acompanhar a jurisprudência dos Tribunais, aprender com o dia a dia nos escritórios de advocacia, encontrar trabalho e sabedoria em um profissional veterano que me usaria como advogado júnior, mas que me transmitiria seu conhecimento e sua experiência profissional.

Chegou o dia do exame, chego cedo, desdenho intimamente o pessoal de cursinhos preparatórios que panfletam a entrada do local de prova, assino a ficha na entrada da sala com confiança, sento-me na carteira disposto, certo que farei uma prova excelente, a prova chega e eu a abro... Minha confiança começa a ruir...

Encontro uma pergunta que exige conhecimento de jurisprudência do Tribunal de Ética da OAB, que raio de pergunta é esta se jurisprudência não é matéria curricular das faculdades e sim conhecimentos que eu ainda vou obter quando for trabalhar??? Pulo a pergunta e a próxima tem 2 respostas certas... Que sacanagem, qual das duas certas tem uma vírgula, um ponto que a torna falsa???? Pulo novamente e ela é sobre Direito Autoral e eu sei que esta é uma matéria optativa, mas minha faculdade não optou por esta matéria e eu nada sei sobre ela... Pulo novamente e a nova pergunta é uma “salada” de Ramos do Direito sem nexo, misturando Direito Civil com Direito alfandegário, com destaque para Direito Previdenciário, bases de Direito Trabalhista, Código de Defesa do Consumidor, Estatuto do Idoso, enfim, uma mistura sem nexo, ou como diria minha avó, “sem pé e nem cabeça”...

Encontro enfim, perguntas de Direito Processual Civil e outras que fazem parte do meu conhecimento, mas elas são minorias, não vou atingir nem os 50% necessários para passar de fase... As 5 horas de exame são um suplício que ainda me era desconhecido. Saio exausto, preocupado, me achando um incompetente, tenho a certeza de que não fui bem e não consigo sorrir por vários dias... Minha mulher nota minha mudança, explico para ela que não sei se passei, pois digo a ela as dificuldades que encontrei. Chega o dia da divulgação da lista, fico no computador atualizando a cada minuto a espera da lista... Quando ela entra na tela, busco ansiosamente meu nome .... Ter um nome começado com a letra R me faz pensar na minha mãe quando escolheu meu nome... Não podia ser um nome começado com A ??? Com B??? Encontro finalmente meu nome, busco com sofreguidão minha nota e vejo que alcancei apenas os 50% necessários... Apesar de todo o meu histórico escolar ser de destaque, fui apenas mediano, mas consegui passar...

Chega a data da 2ª fase e até por precaução vou preparado. Os livros para consulta pesam na mochila às minhas costas, mas estou levando TODOS os livros possíveis de serem utilizados, nada e ninguém vai me impedir de demonstrar meu conhecimento, meu valor, meu preparo. Novamente uma sala silenciosa, a diferença é estampada nos rostos de cada um, afinal, somos menos de 10% dos colegas fazendo a tal 2ª fase.

As perguntas finalmente são fáceis para quem estudou além dos limites como eu. A peça requerida está dentro do que eu estudei e saio do exame satisfeito... Feliz em ter sido um bom e dedicado aluno, de ter trocado os finais de semana no shopping com amigos por horas de estudo extra. Agora é só aguardar minha aprovação e seguir meus estudos já no exercício profissional. Já separo na agenda o telefone de um advogado disposto a me contratar e imagino meu inicio de trabalho, os ternos, as camisas sociais, as salas com ar condicionado, os processos se empilhando ao meu lado e sobre minha mesa.

Preciso mudar meu guarda-roupas, preciso de ternos simples, mas variados. Meus colegas estão felizes com minha vitória. É hora de pedir demissão, usar o dinheiro da rescisão para me preparar para minha nova carreira profissional. O acerto é correto, meu patrão não me enganaria sabendo ser eu um profissional competente no Direito. Levo minha mulher e filho ao shopping para jantar, afinal, uma nova vida começa. Minha mulher enfim está sorridente, seu marido é doutor...

No dia da divulgação do resultado da 2ª fase, nem tive a preocupação de estar de madrugada na frente do computador, fui abrir a Internet só depois do almoço, apenas pela curiosidade de ver a nota obtida... Vasculho a lista de aprovados e não encontro meu nome !!! Retorno, procuro lentamente de novo e nada !!! Caramba, tem erro aqui !!! Cadê meu nome ???

Na manhã do dia seguinte, cheguei antes da abertura da OAB, esperava ser o único, mas já tinha uma aglomeração na frente do local. Todos, como eu, reclamavam da correção, alegavam erro e queriam corrigir suas notas, pois tinham feito a prova com a mesma qualidade da minha...

Abriram-se as portas e funcionários de cenho franzido, faziam questão de não escutar o que falávamos e de forma mecânica distribuíam formulários de recurso. Tive acesso a minha prova e constatei que mesmo certas, minhas respostas e minha peça tinham correções esdrúxulas... Parecia que os examinadores não falavam o mesmo português nem entre eles !!! Um examinador me deu 8 na peça que outro me deu zero !!! Ilógico !!! Irracional!!! Inusitado!!! Despropositado!!! O Que era aquilo ???? Fiz o meu recurso em minutos, embasei muito bem minha defesa, apontei os erros dos examinadores e novamente me senti confiante. Era apenas um erro e ele seria corrigido. Quando cheguei em casa, minha mulher ainda tinha os olhos vermelhos de chorar, mas nada me disse e meu bom humor e confiança fizeram bem a ela.

Após dias de expectativa, o resultado do recurso saiu... Para minha surpresa, má surpresa, meu recurso tinha sido INDEFERIDO, mas cadê a fundamentação ??? Onde está o embasamento para o indeferimento ??? Me senti um verme pisado pela bota de montaria de um gigante... Esmagado... Respirei fundo e voltei à OAB, perguntei pelo responsável pelo exame e uma funcionária de forma displicente apontou para um corredor. Ao dobrar a esquina para o tal corredor, encontrei de novo uma multidão aguardando. O ar era fúnebre, as faces carrancudas, o clima era pesado, mas interessante, era exatamente como eu me sentia, parecia que eu trouxera mais material para aumentar o ambiente tétrico que reinava....

Depois de um “chá de banco” de horas, chegou minha vez. Um homem de aspecto cansado, com ar de poucos amigos e em mangas de camisa me perguntou sem rodeios: Qual é teu caso??? Expliquei que minha prova estava correta, os erros dos examinadores, a falta de fundamentação do indeferimento e a resposta foi curta e grossa: Não temos como explicar a cada um de vocês onde foram incompetentes, onde erraram e o que tinham de fazer, tenha paciência e espere o próximo exame, mais 4 meses e tem outro .

Tentei argumentar que não podia esperar, que estava desempregado e que precisava da carteira para poder trabalhar e sustentar minha família. A resposta foi lacônica e seca: Aqui não é assistência social, não tenho nada com isto, se acha que está errado, busque a Justiça...

Sai da sala pronto para realmente buscar a Justiça, aplicar o que havia aprendido nos bancos acadêmicos, saí do local com um Mandado de Segurança pronto na cabeça, com todos os fundamentos conferidos, com tudo certo para defender meu Direito... Parei no primeiro orelhão e liguei para o advogado que estava disposto a me contratar. Expliquei para ele minha situação e pedi para ele assinar a ação. Minha primeira desilusão: A resposta foi de que eu teria de esperar a aprovação e a carteira para ser contratado – se a vaga permanecesse, já que haviam outros em vista – e que ele não iria assinar uma ação contra a Ordem dos Advogados, pois senão, ele ficaria “queimado” com seus amigos e poderia ser retaliado pela própria Ordem.

Voltei para casa e se os olhos da minha mulher estavam vermelhos, os meus ficaram pouco depois. Meu humor ficou irascível e correspondi com uma carranca o sorriso de boas vindas do meu filho, que nada entendeu... Comecei a procurar advogados amigos, colegas que tinham passado no exame e todos me responderam negativamente: Assinar uma ação contra a OAB??? Não, se precisasse de dinheiro eles até emprestariam, mas ir contra a OAB nem pensar... Passei a procurar advogados pela lista telefônica e a peregrinar pelos escritórios. Nada, ninguém iria assinar uma ação contra a OAB, o medo de retaliação era grande e eu via na face dos advogados a frase: Porque não estudou melhor para passar ???

Acabou o dinheiro da rescisão e minha mulher levou meu filho para a casa da minha sogra. Minha casa que antes era meu refúgio, virou minha prisão. Prestei novo exame e não passei nem da primeira fase... O dinheiro tinha acabado e voltei para minha cidadezinha e para a casa dos meus pais... Eles que acompanhavam minha luta, me receberam resignados, sem abraços de boas vindas. Era uma fracassado que voltava ao lar paterno.

Um amigo de infância, penalizado com minha situação, me ofereceu emprego de chapeiro no trailer de lanches que possuía. Sem dinheiro e sem ter o que fazer aceitei. Reunia poucos centavos para pagar nova taxa de inscrição no exame de ordem e fiz mais um exame. Novamente não passei da 1ª fase... Meus pais me criticaram, briguei com eles e fui morar em uma edícula no fundo da casa do meu irmão. Me alimentava no trailer e levava um lanche escondido para me alimentar durante o dia. Pensava em fazer o tal cursinho, mas não tinha mais dinheiro para pagar as mensalidades, caras e inacessíveis. Não tomava mais banho diariamente, não fazia a barba com regularidade, usava a mesma roupa vários dias, não fazia amizades e não contatava os amigos. Estava com depressão profunda.

Meu amigo, o dono do trailer, com comiseração, me ordenou que fosse a um psicólogo antes que ele tivesse que me despedir, pois eu estava um trapo humano, aliás, só um trapo, de humano nada havia mais em mim. As sessões com o psicólogo nada modificaram em minha vida e em minha depressão e o psicólogo me encaminhou para um psiquiatra. As sessões com ele não resolveram nada, mas os remédios agiram e eu voltei a me banhar, vestir e me cuidar um pouco pelo menos.

Um dia de folga de um atendente, levei um lanche até a mesa de um grupo e a conversa deles me interessou: A inconstitucionalidade do exame de ordem e a sacanagem da OAB em usar um exame ilegal para barrar o acesso à carreira e fazer uma reserva ilegal de mercado. Puxa vida !!! Eu nunca havia me atentado para isto !!! Sabia que tinha uma lei que previa o exame, mas nunca procurei saber se ela era constitucional ou não !!! Justo eu que sempre fui estudioso e combativo não havia procurado estudar a questão que me afligia !!!

Nada disse, mesmo sabendo que o grupo era cliente do trailer. Fiquei quieto, voltei a casa dos meus pais que há muito tempo não via e pedi para pegar meus livros que estavam guardados na casa. Mesmo sob olhar estranho de meus pais, fiquei algumas horas estudando e vi que o grupo tinha razão. O exame era inconstitucional. O art. 5º, XIII combinado com o Art. 205 da Constituição provavam isto. Qualificação eu tive na faculdade, nada mais podia vetar meu trabalho !!!

Um novo homem aguardou a vinda do grupo ao trailer. Algumas noites apenas e vi um rosto conhecido. Abandonei meu posto e fui conversar com ele. Ele era bacharel em Direito como eu e me disse que fazia parte de um movimento de bacharéis que lutava pelo fim do exame de ordem. Tirou da pasta um papel e o li avidamente. Era isto, o exame não era inconstitucional só materialmente no quesito “Qualificação”, também infringia o Principio da Isonomia do art. 5º caput, era inconstitucional formalmente, já que havia sido regulado pelo Conselho da OAB e não pelo Presidente da República como determinava o Art 84, inciso IV da Constituição e já havia sido revogado tacitamente pela Lei 9.394/96... E eu que não sabia e não busquei me informar sobre isto...

Abracei o colega, pois a leitura do que havia lido era o remédio para a alma que eu precisava. A primeira pergunta minha foi porque eles não colocavam aquilo na imprensa, a resposta foi: A OAB domina a mídia há anos, ainda não temos espaço para levar isto aos colegas. E porque não levam isto aos Tribunais, perguntei: E qual advogado vai assinar uma ação contra o exame de ordem, a menina dos olhos da OAB, foi a resposta que me fez lembrar de minha própria peregrinação...

E o que posso fazer para mudar isto ??? Minha pergunta fez o colega sorrir. Una-se a nós, me disse, se juramos trabalhar por um Brasil melhor, pela Democracia e pelo Estado Democrático de Direito quando nos formamos, temos que lutar pelos nossos direitos pois somos vítimas da reserva de mercado que a OAB impõe com este exame ilegal, imoral...

Assim, eu me filiei ao MNBD. Aceitei que, assim como fui um lutador para não parar no primário, fazer o ginasial com sacrifício, terminar o colegial brigando contra meu sono de trabalhador e terminar a faculdade esgotado, eu teria sim capacidade de lutar mais um pouco pelo meu Direito. O fruto almejado estava no último galho da arvore e eu teria de subir mais para pagá-lo, mas eu tinha os instrumentos para chegar lá.

Entrei em uma luta dura, com muito chão para ser percorrido, mas sou um novo homem. Hoje sei que não sou incompetente, não sou ignorante jurídico, que minha faculdade não era “de esquina” como a OAB fala na imprensa. Hoje eu sei que a OAB faz reserva de mercado, a custa da vida de milhões como eu, que conseguiram terminar a Faculdade em um País em que isto é para uma minoria e que somos ilegalmente impedidos de trabalhar. Hoje sei que a OAB através de seus líderes criminosamente mata a vida, os sonhos e as metas de milhões de bacharéis em Direito e que o meu passado é igual ao da maioria deles. Hoje eu sei que terei de lutar se quiser ser um profissional de fato, pois já sou de direito. Hoje eu sei que terei de buscar nos tribunais, nos parlamentos, nas ruas, meu Direito negado.

Mas eu vou à luta, pois sou um bacharel em Direito, advogado por qualificação e lutador por tradição. Eu vou à luta junto com meus colegas, pois a união nos dará forças para defender o Brasil, a Constituição, a Democracia e principalmente, o direito de milhões de colegas que ainda não tiveram a oportunidade de saber que este exame é inconstitucional, formal e materialmente, que já está revogado, que suas faculdades são normais, que sua formação foi de boa qualidade e que não são nem incompetentes e nem ignorantes jurídicos e que não devem ir para os divãs e sim para os parlamentos municipais, estaduais e federais pressionar seus representantes a mudar a legislação de forma nacional e aos tribunais em busca de Justiça. Mostrar que temos o Direito e que lutaremos até a extinção desta anomalia que sobrevive neste País ainda longe de ser verdadeiramente Democrata.

Em breve serei um advogado. Estarei a disposição das camadas mais pobres que hoje passam ao largo dos escritórios por falta de ter dinheiro para pagar honorários cobrados até pelo “bom dia” da secretária. Em breve, advogados serão profissionais acessíveis a todos, todos poderão lutar por seus direitos de consumidor, de trabalhador e de cidadão sem preocupação com os honorários a pagar. Em breve, serei mais um trabalhador brasileiro, sem status, sem grandes patrimônios, mas com condições de por o pão na mesa e manter minha família com o meu trabalho. Em breve, este País vai mudar, os tribunais receberão lides mais simples, mas que são importantes na vida de cada cidadão que quer ver seu Direito assegurado. Em breve, um batalhão de novos profissionais vai iniciar sua luta em prol da Democracia, do respeito à Constituição e ao Estado Democrático de Direito, pois trarão em sua bagagem de vida, a lembrança de terem sido vítimas de um sistema criminoso e isto os impulsionará a defender outros desvalidos...

A narrativa em forma de crônica acima não é o retrato da minha vida e sim, a soma das minhas vivências com relatos de colegas dos mais diversos pontos do Brasil nestes meus mais de 2 anos de luta contra este exame ilegal, imoral e hipócrita da OAB. Relatos ainda mais pungentes, mais sofridos e que retratam a realidade de milhões de bacharéis impedidos de trabalhar, formados por universidades boas para formarem jornalistas, engenheiros, administradores, médicos, mas não bacharéis em Direito segundo a OAB. Pessoas como nós, que perdem emprego, família e a própria alma por se sentirem incompetentes e acreditarem – assim como seus familiares e amigos – no discurso mentiroso que a OAB vem impingindo há anos na mídia a custa de seu lobby econômico, político e estrutural.

Isto vai mudar. Esta mudando. Hoje já há colegas com OAB para assinar ações, já há políticos – senadores, deputados federais e estaduais, vereadores – apoiando nossa luta, já estamos organizados no Brasil e cada Estado organiza o MNBD nas cidades. A Mídia está abrindo aos poucos suas portas. O MNBD – Movimento Nacional de Bacharéis em Direito irá crescer a cada dia e ganhar forças, primeiro para acabar com este exame ilegal e depois para colocar no cenário nacional jovens calejados pela luta por seu Direito e que estarão prontos para defender o Estado Democrático neste Pais.


* Reynaldo Arantes é Bacharel em Direito pela Unoeste de Presidente Prudente/SP e Presidente Estadual do MNBD em São Paulo. Email: mnbd.sp@uol.com.br

Nenhum comentário: